domingo, 8 de março de 2015

UMA POPULAÇÃO DIZIMADA: COMO FOI O AUGE DA AIDS NOS ANOS 1980

Sobreviventes do pico da epidemia compartilham suas memórias do sofrimento por que passaram, e revelam o papel inesperado e importante que lésbicas tiveram no combate a essa crise.
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Fevereiro de 2015 foi o mês da história LGBT no Reino Unido. Isso incentivou que um grupo de membros do site Reddit compartilhassem num fórum suas memórias de como foi passar pelo início da epidemia da Aids na década de 1980. São relatos de uma população desamparada, que sabia que estava sob risco de morte mas não contava com qualquer tipo de informação que lhe permitisse se defender de um mal traiçoeiro.
No Brasil um fenômeno semelhante aconteceu, como consta no filme São Paulo em Hi-Fi e nos relataram profissionais do hospital Emilio Ribas que trabalhavam na época. “Vi duas ou três pessoas se suicidando, correndo e se jogando da janela do hospital, passando na frente dos médicos, porque era uma vida totalmente sem esperança”, lembrou a doutora Gloria Brunetti, infectologista. “Bem no início a gente não sabia o que causava. Não tinha informação nenhuma. Minha mãe tinha medo que o HIV fosse transmitido por mosquito! Jornais publicavam: ‘A peste gay ataca’. No melhor dos casos o prognóstico de sobrevivência era de 12, 15 meses, não havia tratamento nenhum. A gente só conseguia fazer medidas paliativas, tratando infecções. Eu cheguei a perder 100 pacientes em um ano. Havia um médico no hospital apenas responsável por fazer atestados de óbito.”
Confira abaixo outros relatos, traduzidos do fórum no Reddit.

“Três ou quatro amigos morriam por mês”

Eu sou um gay de 62 anos. Felizmente eu atravessei a epidemia que teve início no começo dos anos 1980 e se estendeu até o meio dos anos 1990. Vocês querem saber como era? Eu não sei se eu consigo sequer começar a dizer de quantas maneiras a Aids afetou minha vida, apesar de eu nunca ter contraído o vírus.
No começo dos anos 1980, eu tinha um círculo bastante extenso de amigos e conhecidos, e quando a epidemia realmente começou a pegar, não era incomum descobrir que três, quatro ou mais pessoas que você conhecia morriam a cada mês. Nós organizávamos grupos de apoio formais e informais para cuidar de nossos amigos que ficavam doentes. Alimentá-los quando eles conseguiam comer. Trocar suas roupas. Dar-lhes banho. Funcionar como leva-e-traz entre eles e familiares que “estavam preocupados” sobre seus filhos, sobrinhos, irmãos etc., mas não se dispunham a dar uma mãozinha porque eles tinham, sabe, nojinho da Aids.
Depois que eles morriam, havia funerais a se organizar rapidamente, sem tempo para ficar de luto, porque quando uma pessoa morria, já havia outra pessoa que precisava de sua ajuda e o processo todo começava de novo.
Eu mantive um álbum de fotos de todos que eu conhecia e que haviam morrido de Aids. Só vou dizer que ele é bem grande. Quem eram esses rapazes? Essas eram as pessoas com quem eu planejava envelhecer. Eles eram a família que eu havia criado e queria passar o resto da minha vida, por tanto tempo quanto fosse humanamente possível, mas, quando eu cheguei nos meus 40 anos, todos eles já tinham morrido, com exceção de dois de meus amigos queridos.
Tudo que nos restou desses dias somos nós, nossas memórias e as fotos. Eu espero que esse relato não dê a impressão de que quero que fiquem com pena de mim. Eu estou em forma, ativo, saudável, e sabe do que mais? Eu aproveito cada dia da minha vida ao máximo. Eu aproveito porque a maior parte dos meus amigos não pôde fazer isso. Da minha própria maneira, eu quero honrar as vidas deles ao viver e usufruir a minha.
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 “Só estou vivo hoje por pura aleatoriedade”

Era aterrorizante. Todo cara que você conhecia era uma bomba-relógio em potencial. Especialmente no período inicial quando se sabia muito pouco a respeito – não se sabia se era possível contrair por beijo, por ficar de mãos dadas…
E daí uma porção de seus amigos ou amigos de amigos ficam doentes e cada vez mais doentes e daí morrem. E você nunca deixa de ficar puto pra caralho sobre essa coisa toda. Só estou vivo hoje por pura aleatoriedade.

“Parecia que as pessoas desapareciam”

Se você vivia no Castro em San Francisco, todos no bairro eram gays… Então não eram apenas seus amigos que estavam morrendo, era toda a vizinhança. Um dia trocavam o seu carteiro, no dia seguinte a floricultura fechava… Você nem era convidado pro funeral, parecia que as pessoas simplesmente desapareciam.

“Figuras ficavam felizes que isso estava acontecendo”

Era loucura. Era terrivelmente cruel. Era inexplicável e inexplicado, por muito tempo. As pesquisas não tinham fundos, e em muitos casos grandes instituições e figuras públicas ficavam muito felizes de que isso estava acontecendo. As pessoas morriam repentinamente de coisas absurdas. Fungos nos pés! Sapinho! Erupções na pele! Olhos que se enchiam de sangue. Uma merda horrorosa.
Todo mundo sabia que isso acometia os gays, ninguém sabia o que era isso. Chamavam de câncer gay. As pessoas ficaram muito supersticiosas. Eu estaria segurando as compras de supermercado com os dois braços, e um homem me diria para não apertar o botão do elevador com o nariz porque eu poderia pegar Aids assim. É. Isso aconteceu.

“Ninguém deveria morrer sozinho e ouvir de familiares que isso é castigo divino”

Apesar de, como lésbica, não estar num “grupo de risco” (como se diz hoje em dia), todos nós perdemos muitos bons amigos. É verdade que há uma atitude separatista (que me deixa pasma) entre alguns gays e algumas lésbicas; ela acontecia ainda mais naquele tempo, mas essa tragédia nos aproximou.
Ficar ao lado do leito de um amigo que estava num estágio terminal, e simplesmente segurar sua mão enquanto todos os outros estavam morrendo de medo, era uma dádiva que eu estava disposta a dar.
Ninguém deveria morrer sozinho, e ninguém deveria estar num hospital, em seu leito de morte, com familiares ligando para dizer que “isso é castigo divino”. Eu e meus amigos, homens e mulheres, agíamos como uma camada protetora para os amigos doentes, e como companhia para amigos em comum que lidavam com a mesma realidade difícil de tentar estar lá, de se manter forte enquanto perdíamos nossa família por todos os lados. Tempos difíceis que não deveriam jamais ser esquecidos.
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“Lésbicas cuidavam de gays que muitas vezes as desprezavam”

As lésbicas entraram na linha de fogo, mesmo não tendo que fazê-lo. E fizeram isso mesmo quando os gays de quem cuidavam as tratavam com desprezo ou desdém.
Na época não era incomum que os gays torcessem o nariz para a lésbica caminhoneira que entrava no bar vestindo macacão e camisa de flanela. Muitas vezes, eram apenas comentários maldosos que elas tiravam de letra. Mas os comentários podiam ficar muito mais ácidos, principalmente quando as lésbicas começavam a frequentar um bar que até então era frequentado apenas por homens.
Quando a crise da Aids surgiu, foram muitas dessas mesmas mulheres que saíam direto de seus empregos durante o dia para cuidar dos gays à noite. Como a maioria delas não tinha treinamento médico, geralmente lhes cabia as tarefas mais desagradáveis: limpar vômito e merda, arrumar casas e apartamentos que haviam sido negligenciados por semanas e meses. Mas, por não serem diretamente responsáveis pelos cuidados médicos, elas também se tornavam alvos fáceis para a raiva e fúria devastadoras que esses homens sentiam – muitos que haviam sido abandonados por seus próprios familiares e amigos.
Essas mulheres se jogaram na linha de fogo. Elas vinham ajudar gays mesmo não se sabendo bem como era a transmissão do vírus. A transmissão por agulhas ainda era uma preocupação, então muitas vezes elas usavam duas ou três luvas de látex para se protegerem. Mais de uma vez, no entanto, eu as vi jogar as luvas fora, com pressa e frustração, para conseguirem ver se alguém estava com febre, ou para segurar uma mão que estava caída na beira de um lençol que haviam acabado de lavar.
Elas ofereciam ajuda, conforto e cuidado médico para homens que definhavam em hospitais, homens que já haviam perdido seus amantes e amigos para a doença e passavam seus últimos meses em agonia. Eles haviam sido abandonados pelas próprias famílias, e não fossem as lésbicas – a maioria, se não todas, voluntárias – eles teriam sofrido sozinhos. E quando não havia mais nada que a medicina podia fazer, e seus pulmões começavam a se encher de líquido, muitas vezes eram essas mesmas mulheres que ficavam encarregadas de administrar morfina o suficiente para que eles partissem, fornecida a elas por médicos que deixavam o quarto e retornavam 15 minutos depois para assinar o atestado de óbito (uma prática comum na época).
Eu conheci uma mulher nessa época que a certa altura estava ganhando bastante dinheiro com construções. Mas quando a crise da Aids teve início ela abandonou sua carreira para estudar enfermagem, e estava prestes a se formar quando nós nos conhecemos. Ela era muito boa de copo, e felizmente eu também era. Uma noite nós estávamos muito bêbados num bar e um cara sussurrou um comentário maldoso, mas leve, a respeito dela. Ela mostrou o dedo pra ele, ele mostrou pra ela, e mais tarde, furioso e indignado, eu lhe perguntei: “Por que você está nessa? Por que você abandonou uma carreira de sucesso para cuidar desses cuzões que ainda assim não te respeitam?”.
Ela me olhou com um semblante surpreendentemente sério e disse “meu amor, porque ninguém mais vai fazer isso”. Eu me lembro de ter ficado com vergonha depois disso, porque minha fúria e indignação não eram capazes de lavar o sangue e o vômito do chão; eu não me dispunha a fazer esse tipo de merda que precisava ser feita.
O HIV matou meus amigos, me tirou meu amante, e destroçou minha vida. Naquela época, eu fiz o que pude. Mas nada que eu fiz naquela época ou fui chamado a fazer na minha vida me coloca à altura do exemplo dado pelas lésbicas que eu conheci nos anos 1980 e 1990. Eu me sinto obrigado a lembrar o que elas fizeram, e garantir que outras pessoas se lembrem disso também.

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